O gosto que as coisas tem

Eu sempre gostei de São Paulo. Para mim, São Paulo tinha cheiro de férias.
Era um dia de passeio diferente: conhecer museus, grandes avenidas, prédios
altos e a Paulista enfeitada para o Natal.
Eu queria que fosse assim para Malu. Mas São Paulo significa outras coisas
para ela. Malu também não gosta de groselha. E, esses dias, ela disse que
morango com leite condensado é horrível. Como assim? Morango com leite
condensado é uma das combinações mais gostosas.
Ela disse que tem gosto de antibiótico. E antibiótico lembra o Hospital Sabará,
que remete às tantas vezes que ela foi internada. E às tantas vezes que a
gente correu para São Paulo com ela vomitando pelo caminho. Malu não gosta
de São Paulo.
Essas não foram as únicas experiências que Malu teve em São Paulo. Nós já
fomos passear, visitamos o Museu Catavento diversas vezes e ela já foi em
excursões da escola a muitos outros locais. Ela se esforça, mas sempre fala de
São Paulo com desencanto. Se ela puder escolher outro lugar para ir, com
certeza, ela irá. Para Malu, São Paulo veio vestida de dor.
E a doce groselha, assim como o sabor artificial de morango, tudo isso que faz
parte do paladar infantil, veio disfarçando uma verdade amarga: ela vivia
doente.
Para uma criança, estar doente e dentro de um quarto de hospital é perder
momentos de liberdade, perder momentos de brincadeira, perder eventos
escolares, perder a festa de Carnaval. Tudo isso aconteceu enquanto ela
tomava remédios com sabor de “infância”, enquanto comia gelatina de
sobremesa. Outra coisa que ela não suporta, porque disse que lembra o
hospital.
Malu tem me falado mais sobre o significado de todas essas coisas nos últimos
dois anos. Ela recusava muitas vezes, sem que eu a entendesse e assim,
continuava oferecendo. Mas acredito que hoje ela consegue elaborar tudo isso.
E, junto, eu também elaboro. Curiosamente, o que é ruim para ela me traz uma sensação de acolhimento. O Sabará, este hospital infantil, foi onde eu encontrei segurança para cuidar da Malu. Nós quase a perdemos em hospitais aqui de Santos. Chegar tão rapidamente à Avenida Angélica, até aquele hospital e ver minha filha sendo tão bem atendida aquecia o meu coração. Era horrível estar
dentro de um hospital, mas não dentro do Sabará. Não sei se vocês me entendem.
O que eu quero dizer é que nós compartilhamos aparentemente a mesma
experiência, mas a experimentamos de formas completamente diferentes. Ela conseguir conversar comigo e falar tudo o que sente me dá a oportunidade de compreender quem é minha filha, o que ela gosta e o que não gosta. As tantas
vezes que insisti para irmos a São Paulo, e ela falar que não queria ir, me fizeram compreender o quanto preciso respeitá-la. Respeitar o tempo dela e
sua forma de sentir o mundo.
Ao invés de convidá-la para irmos a São Paulo, eu posso oferecer a ela novos
lugares onde ela possa construir novas memórias. E que, com o tempo, assim
como ela está tão bem e não fica mais doente como antes, ir a São Paulo possa parecer menos assustador.
Eu também pude entender porque o Nordeste, em especial a Bahia, tem um
significado tão bom para ela. Com os quadros agudos e súbitos de Malu, a
gente só se aventurava a pegar um avião e ir tão longe de São Paulo quando
ela estava muito bem. A Bahia trazia bons ventos, bons presságios.
Ela até se diz baiana, deve ser porque na Bahia, Malu renascia vestida de
esperança por dias melhores. Dias como hoje: sem medicações, sem agulhas
e internações.
Mas como pode uma menina tão nova compreender tanto da sua própria
subjetividade? Decodificar as associações e ainda encontrar as palavras certas
para me fazer enxergá-la? Talvez tudo isso tenha feito ela amadurecer mais
rápido. Esse amadurecimento que não cessa, e cá estou eu, amadurecendo também.
Malu pensa em ser psicóloga. E, ainda que não seja, a sua presença já é
terapêutica.
Obrigada, filha. Eu queria deixar registrado tudo o que aprendo com você.


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