Novembro 2024

Tanatofobia

Tanatofobia. Eu desconhecia essa palavra, que significa medo irracional e persistente da morte, até lê-la em uma publicação do Instagram.No mesmo dia, eu estava almoçando em um restaurante com meu marido, e ele comentou comigo: “A gente vê o quanto a vida passa rápido quando tem um filho.”Ele refletia sobre nossa filha já estar entrando na adolescência e o tempo que ainda, possivelmente, nos resta. Eu respondi: “É verdade, mas também o quanto a vida pode ser lenta e dolorosa se a gente perde um.” Reconheci ali um velho conhecido acenando para mim: o medo damorte.Desde muito nova, lembro dessa assombração. “E se a minha mãe morrer?” Mas o medo não era apenas sobre a morte dela. Era sobre a morte de todas as pessoas que eu amo e também sobre a minha. “Para onde eu vou? Será um breu profundo e solitário?”Aos meus seis anos de idade, a minha bisavó morreu. Lembro do velório, a família toda reunida. Eu e meus primos, uma verdadeira gangue com umas vinte crianças, correndopelos corredores do memorial, local onde ela foi velada, rompendo o silêncio fúnebre da morada dos mortos.Meus pais, tios, tias e até mesmo a minha avó materna, que acabara de perder a mãe, estavam fraternos e calorosos. Eles celebravam, com lágrimas nos olhos e sorrisos nosrostos, o legado que aquela mulher forte e amada por todos deixou ao longo dos seus 94 anos de vida.Lembro de minha mãe me contando sobre o último suspiro da dona Odúlia. A imagem que tenho do seu relato é de um sopro com som de adeus e brisa de paz. Ela estava cercada por pessoas que a amavam. A morte mais parecia um portão de embarque que se abria para uma incrível jornada que já se anunciava há tempos. Era impossívelimaginar que algo de ruim aconteceria a ela a partir dali. E do lado de cá, o seu corpo cansado já pedia trégua.Contando desta forma, a morte parece tão natural como o dia e a noite. E talvez seja, quando acontece como um espetáculo da força da natureza. Onde, após um amanhecer ensolarado, vivenciamos um dia radiante e contemplamos o pôr do sol, sem temer a escuridão que se anuncia.Mas uma vida interrompida é como ver o dia virar noite, repentinamente. Isso sim é assombroso.Foi como ocorreu com Marília. Eu não me recordo de nossos momentos, mas alguns registros fotográficos da minha infância trazem uma vaga lembrança dessa nossa amizade. O que tenho em minha memória é a tristeza e a melancolia que adentrou o prédio da minha avó e os corredores de passagem onde as crianças brincavam sobre o chão de caquinhos vermelhos e a vizinhança se encontrava.Marília faleceu atropelada na frente dos pais, em um terrível acidente.As poucas vezes que cruzei com seus familiares, não vi pessoas inteiras. Parte delas havia morrido também.Ainda na minha primeira infância, outra morte trágica de uma criança: a filha do amigo do meu pai, uma menina de uns seis anos de idade, morreu em um acidente doméstico.Eu não a conhecia, mas o acontecimento deixou meus pais extremamente abalados e muito preocupados. Ficaram em estado de alerta com vasos sanitários e diziam a mim e ao meu irmão, repetidas vezes: “Não se balancem, não subam e não brinquem em privadas.”Porém, nada foi igual ao que eu senti quando soube da morte do Daniel.Eu não tinha nem perto de dez anos, mas tinha a certeza de que eu ia me casar com ele.Lembro de brincarmos na área da piscina do camping onde nos conhecemos. Eu era muito criança e ele um garoto mais velho que eu, muito gentil e atencioso. Sua imagemnão tem forma nas minhas lembranças. Daniel é uma sensação boa. A sensação do ventono meu rosto enquanto eu brincava de correr atrás dele. Aquilo devia durar alguns minutos, mas ficava como um looping dentro de mim.E se casar era passar o resto da vida com alguém, um garoto tão legal era perfeito para casar comigo. Mas isso era só um sonho de criança que foi embora junto com a notíciade sua morte.Não era para eu escutar, mas naquela época a gente já ficava esperto na conversa dos adultos. E foi assim, de supetão, que eu soube sobre o incidente com uma colmeia deabelhas, onde ele foi atacado e não sobreviveu.Chorei muito e depois mais um tanto quando assisti no cinema “Meu primeiro amor”.Acho que a canção "MY GIRL", tema do filme, foi a minha primeira música de fossa.Depois dessa sequência de eventos fatais envolvendo crianças na minha infância, a morte deu um descanso.Era a minha adolescência e eu só queria me divertir. Ocupava meu tempo com escola, amigos, baladas e as expectativas de um futuro. Mas quando eu deitava a cabeça notravesseiro, o fantasma da morte voltava. A conta não fechava e nem os meus olhos. Eu perdia o sono pensando: “E se eu morrer dormindo? E tudo que ficou para amanhã?Onde vou acordar?”Nada fazia sentido sabendo que tudo poderia ser interrompido abruptamente. Será queninguém parou para pensar nisso quando fez a jornada escolar, com apenas 20 minutos de intervalo? No final, todo mundo morre!

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Semana 45 2024

O gosto que as coisas tem

Eu sempre gostei de São Paulo. Para mim, São Paulo tinha cheiro de férias.Era um dia de passeio diferente: conhecer museus, grandes avenidas, prédiosaltos e a Paulista enfeitada para o Natal.Eu queria que fosse assim para Malu. Mas São Paulo significa outras coisaspara ela. Malu também não gosta de groselha. E, esses dias, ela disse quemorango com leite condensado é horrível. Como assim? Morango com leitecondensado é uma das combinações mais gostosas.Ela disse que tem gosto de antibiótico. E antibiótico lembra o Hospital Sabará,que remete às tantas vezes que ela foi internada. E às tantas vezes que agente correu para São Paulo com ela vomitando pelo caminho. Malu não gostade São Paulo.Essas não foram as únicas experiências que Malu teve em São Paulo. Nós jáfomos passear, visitamos o Museu Catavento diversas vezes e ela já foi emexcursões da escola a muitos outros locais. Ela se esforça, mas sempre fala deSão Paulo com desencanto. Se ela puder escolher outro lugar para ir, comcerteza, ela irá. Para Malu, São Paulo veio vestida de dor.E a doce groselha, assim como o sabor artificial de morango, tudo isso que fazparte do paladar infantil, veio disfarçando uma verdade amarga: ela viviadoente.Para uma criança, estar doente e dentro de um quarto de hospital é perdermomentos de liberdade, perder momentos de brincadeira, perder eventosescolares, perder a festa de Carnaval. Tudo isso aconteceu enquanto elatomava remédios com sabor de “infância”, enquanto comia gelatina desobremesa. Outra coisa que ela não suporta, porque disse que lembra ohospital.Malu tem me falado mais sobre o significado de todas essas coisas nos últimosdois anos. Ela recusava muitas vezes, sem que eu a entendesse e assim,continuava oferecendo. Mas acredito que hoje ela consegue elaborar tudo isso.E, junto, eu também elaboro. Curiosamente, o que é ruim para ela me traz uma sensação de acolhimento. O Sabará, este hospital infantil, foi onde eu encontrei segurança para cuidar da Malu. Nós quase a perdemos em hospitais aqui de Santos. Chegar tão rapidamente à Avenida Angélica, até aquele hospital e ver minha filha sendo tão bem atendida aquecia o meu coração. Era horrível estardentro de um hospital, mas não dentro do Sabará. Não sei se vocês me entendem.O que eu quero dizer é que nós compartilhamos aparentemente a mesmaexperiência, mas a experimentamos de formas completamente diferentes. Ela conseguir conversar comigo e falar tudo o que sente me dá a oportunidade de compreender quem é minha filha, o que ela gosta e o que não gosta. As tantasvezes que insisti para irmos a São Paulo, e ela falar que não queria ir, me fizeram compreender o quanto preciso respeitá-la. Respeitar o tempo dela esua forma de sentir o mundo.Ao invés de convidá-la para irmos a São Paulo, eu posso oferecer a ela novoslugares onde ela possa construir novas memórias. E que, com o tempo, assimcomo ela está tão bem e não fica mais doente como antes, ir a São Paulo possa parecer menos assustador.Eu também pude entender porque o Nordeste, em especial a Bahia, tem umsignificado tão bom para ela. Com os quadros agudos e súbitos de Malu, agente só se aventurava a pegar um avião e ir tão longe de São Paulo quandoela estava muito bem. A Bahia trazia bons ventos, bons presságios.Ela até se diz baiana, deve ser porque na Bahia, Malu renascia vestida deesperança por dias melhores. Dias como hoje: sem medicações, sem agulhase internações.Mas como pode uma menina tão nova compreender tanto da sua própriasubjetividade? Decodificar as associações e ainda encontrar as palavras certaspara me fazer enxergá-la? Talvez tudo isso tenha feito ela amadurecer maisrápido. Esse amadurecimento que não cessa, e cá estou eu, amadurecendo também.Malu pensa em ser psicóloga. E, ainda que não seja, a sua presença já éterapêutica.Obrigada, filha. Eu queria deixar registrado tudo o que aprendo com você.

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Novembro 2024

Você vai sobre(viver)

Eles dizem: Você vai viver até os cem anos.A expectativa de vida mudou.Eles também dizem que essa história de aposentadoria acabou.Você vai ter que trabalhar para pagar:pagar o que comer, o teto onde morar,a academia, a terapia, a Shein, os impostose o que mais lhe for imposto.Aproveite e se olhe no espelho.Se apega bem a esse rosto.Isso se você for novinha.É ele quem deve te acompanhar por toda a vida:intacto, sem linhas, sem rugas, sem expressaressa confusão toda que está na sua mentesobre quem você realmente é.Mas se já passou dos 30,desapega dessa cara.Está velha, ultrapassada, está acabada.Vai no Instagram, escolhe um filtro bem tchane leva para a dermatologista,mas não esquece do psicanalista.Você vai precisar.Recapitulando:a expectativa de vida mudou.Você vai (sobre)viver...Será?

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